Foto: Marcel Carneiro
Vivemos uma crise socioambiental profunda. Desde a década de 1960, diversos cientistas têm nos alertado para os problemas causados pela poluição, aquecimento global, crise hídrica e perda de biodiversidade. Esses alertas indicam que para mantermos a base ambiental das sociedades humanas precisamos de transformações profundas nas nossas técnicas, infraestruturas e estilos de vida. Porém, apesar de todo o nosso conhecimento e todo o avanço tecnológico que a humanidade conquistou, vivemos na apatia e na inércia. Continuamos nossas vidas usuais, sem conseguir colocar em prática essas transformações tão necessárias. Pequenos nichos de inovações de base, como ecovilas, Cidades em Transição, movimentos de hortas urbanas e muitos outros grupos da sociedade civil têm surgido como protagonistas, iniciando essa revolução da vida cotidiana tão necessária, mas ainda tão tímida.
Para que alcancemos uma transição para a sustentabilidade, essas iniciativas precisam ganhar escala. Economistas, arquitetos, administradores, professores: cada um tem um papel importante nessa transição e as novas gerações de profissionais terão de enfrentar essas mudanças inevitáveis, dentro de suas áreas de atuação. Quando pensamos no ensino superior, na formação desses futuros profissionais, precisamos nos perguntar:
- Como munir as novas gerações de profissionais das ferramentas necessárias para lidar com os problemas ambientais que tendem a se tornar cada vez mais prementes?
- Como apresentar aos estudantes não apenas os problemas que afligem a humanidade, mas, também, oferecer a eles caminhos para transformar a realidade e trabalhar em prol da transição para uma sociedade mais sustentável?
É preciso tirar a juventude da apatia e apresentar a situação da humanidade hoje não como motivo de desespero, mas como uma oportunidade. Oportunidade de viver uma vida repleta de propósito, de sentido. Oportunidade de estar trabalhando para construir um mundo mais justo, sustentável e solidário. O desejo de mudar o mundo é um desejo próprio da juventude, mas que é facilmente abafado pelo discurso pessimista. Uma nova narrativa é necessária que gere engajamento e motivação.
Desde o início de 2019, o IBC - Instituto Biorregional do Cerrado, em parceria com o Centro de Estudos do Cerrado (CER) da Universidade de Brasília, têm recebido alunos de graduação da UnB para uma disciplina chamada “Transições para a sustentabilidade e nichos de inovação de base” (TSNB).
As aulas da disciplina ocorrem dentro do IBC e incluem aulas teóricas sobre a transição, bem como oficinas em práticas sustentáveis, tais como bioconstrução, permacultura e gestão emocional. Esse projeto, idealizado pela moradora da ecovila e professora voluntaria do CER, Rebeca Roysen, foi inspirado em dois projetos similares de parceria entre Institutos de Ensino Superior e ecovilas, ambos desenvolvidos nos Estados Unidos: o programa Living Routes da Universidade de Massachusetts e o Programa de Estudos Ambientais da Faculdade de Ithaca em parceria com a Ecovillage at Ithaca.No entanto, no IBC, a disciplina foi desenhada de acordo com os saberes e conhecimentos existentes na comunidade.
O objetivo da disciplina TSNB é o de refletir, por meio de teoria e prática, sobre os desafios e possibilidades nos processos de transição na direção da uma sociedade sustentável, a partir da experiência de transição da ecovila Aratikum do IBC. Após dois semestres, foi possível fazer uma primeira avaliação da experiência, relatada em um artigo (em construção), cuja primeira versão está disponível neste link:
Foto: Marcel Carneiro
Foram 136 alunos de 34 cursos diferentes, a maioria da Gestão Ambiental, Arquitetura e Urbanismo, Ciências Biológicas, Ciências Ambientais, Ciências Sociais e Engenharia Ambiental. Os relatos dos alunos revelam que a vivência na ecovila foi capaz de instigar uma reflexão mais profunda sobre os hábitos e modos de vida normalizados na nossa sociedade, e sobre os ciclos em que se inserem nossas práticas cotidianas: de onde vêm e para onde vão os alimentos consumidos, para onde vão os dejetos do banheiro, de onde vêm e para onde vão os materiais de construção convencionalmente utilizados. Os alunos puderam conhecer diversas tecnologias e práticas sociais inovadoras, ampliando o seu repertório de ferramentas e soluções.
Ao vivenciarem o cotidiano da ecovila, os alunos puderam ver que existem pessoas que estão construindo novos modos de vida e desenvolvendo inovações sustentáveis na prática. Para além da crítica às questões socioambientais, a disciplina oferece um leque de soluções. Por menores que sejam essas soluções, elas fortalecem o sentimento de que somos capazes de fazer algo pelo mundo. Além disso, ao perceber que existem tantas pessoas tão diversas que compartilham desses mesmos sonhos, ressurge a esperança de que mudanças mais amplas são, sim, possíveis. Ao ver que existem pessoas e projetos que estão buscando a transição, alunos e moradores da ecovila se sentem fortalecidos em seu propósito e inspirados a continuar buscando mudanças.
A vivência também levou os alunos a refletirem sobre suas vidas pessoais, suas relações interpessoais e seu propósito de vida. Fica evidente que a formação de cidadãos críticos e profissionais que possam liderar mudanças profundas na sociedade exige, também que os estudantes possam refletir sobre o lugar que ocupam no mundo, parar o ritmo frenético de reprodução social para questionar seus objetivos de vida e trazer sentido para aquilo que estão estudando e buscando. Essa possibilidade de reflexão sobre o mundo, e sobre si mesmos, reavivou nos alunos o desejo de lutar por um mundo melhor e de efetivar mudanças concretas em suas vidas cotidianas - tanto pessoalmente como profissionalmente. O sentimento de apatia e desesperança foi substituído pela vontade de fazer a diferença. Quando esse sonho é compartilhado por um grupo, a esperança renasce e a motivação emerge.
Diante da crescente problemática ambiental e da aparente incapacidade da nossa sociedade de gerar transformações profundas nas tecnologias e nos estilos de vida, a educação superior tem a responsabilidade de formar indivíduos e profissionais que possam liderar essas mudanças. Formandos de diversas áreas do conhecimento precisam aprender a trabalhar juntos, e com a sociedade civil, para lidarem com os problemas que surgem com a crise ambiental e serem capazes de criar soluções inovadoras e transformadoras que impulsionem a transição para a sustentabilidade. Para isso, os alunos precisam não apenas de conhecimentos teóricos, mas de motivação para buscar a mudança, capacidade de trabalhar de forma colaborativa com atores diversos, abertura para soluções inovadoras, e capacidade de autocrítica e autorregulação. Para isso, a educação superior precisa de “salas de aula” vivas, que dialoguem com a sociedade civil, que gerem novas narrativas sobre a época que vivemos. Só assim poderemos mobilizar as novas gerações a sair da apatia e a trabalhar em prol de uma sociedade mais sustentável, saudável e cooperativa.
Essa experiência inovadora, ao conectar pesquisa acadêmica, saberes práticos, e desenvolvimento pessoal, mostra o potencial das parcerias ente ecovilas e Universidades em apoiar na formação não só profissionais mais responsáveis e críticos, como, também, cidadãos reflexivos, capazes de liderarem a transição, dentro de suas áreas de atuação específicas, em contínua colaboração com outras áreas e atores sociais.
Foto: Marcel Carneiro
Seguem abaixo alguns trechos selecionados dos relatórios escritos pelos alunos:
Essa matéria foi uma das matérias mais diferentes e ricas em diversos fatores que já participei até agora durante quatro anos dentro da universidade. [...] Consegui vivenciar sentir diversos sentimentos, sendo o mais forte deles, o de pertencimento e de acolhimento, foi lindo ver, perceber o quanto é importante a coletividade e o quanto o trabalho em coletivo consegue gerar resultados positivos, foi muito importante conseguir ver que não estou sozinho e que possui muitas pessoas com os mesmos sonhos, objetivos e vontades de se viver e construir um futuro melhor, com mais equilíbrio, amor, harmonia e união. (estudante de Gestão Ambiental)
Posso afirmar que saí dessa vivência com as forças renovadas, com várias ideias para botar em prática e inúmeros objetivos a serem alcançados. [...]. A sensação de ausência de esperança foi substituída pela vontade de não fugir dessa luta que está sendo querer mudar o estilo de vida das pessoas para um sistema mais sustentável tanto ambientalmente quanto socialmente falando. (estudante de Ciências Biológicas)
Na minha cabeça vinham diversos questionamentos o tempo inteiro, desde “será que posso jogar esse lixo aqui?”, “será que esse lixo era realmente necessário?”, “pra onde vai essa água que a gente toma banho?”, questionamentos esses que não existem no meu dia a dia, mas que hoje vejo a importância de se questionar tudo, pois as coisas simplesmente não somem do mundo, elas apenas são destinadas para outro lugar. (estudante de Engenharia Florestal)
O trabalho da disciplina foi além do acadêmico convencional. Houve força de trabalho para manter todo nosso grupo de alunos e com tudo isso nos mostrar o quanto somos responsáveis e agentes ativos no ciclo em que vivemos. Saber de onde os alimentos vinham, para onde iriam depois de consumidos, o lixo que produzimos, a água que consumimos, tudo tem um início e fim e esse processo pode ser harmonioso e não degradante para nenhuma das partes. Como futura Arquiteta e Urbanista, levarei a conscientização de que meu projeto pode impactar diretamente no meio ambiente, a depender do material que escolho, da destinação final dos recursos usados e dos espaços destinados à práticas ambientais. (estudante de Arquitetura e Urbanismo)
[...] eu adoro a questão espiritual e social trabalhada na ecovila e a forma como todos têm a oportunidade de ouvir e falar abertamente sobre o que está sentindo [...] Eu entrei na ecovila esperando conhecer mais sobre práticas sustentáveis e sai de lá sabendo mais sobre isso, mas também saí aprendendo muito mais sobre mim. (estudante de Arquitetura e Urbanismo)
A proposta da disciplina de fato surpreende, eu me surpreendi como é possível em dois finais de semana abarcar tantos assuntos, e assuntos que não seriam possíveis em sala de aula, acredito que essa disciplina deva permanecer por mais tempo, alcançar cada vez o máximo de pessoas. Não é fácil, da pra ver o cansaço de quem a organiza e colabora, mas acredito que é gratificante, muita gente chora no final, fica emocionado, porque a mudança perpassa a aprendizagem comum, toca no autoconhecimento, em coisas simples como viver em coletividade, quebra nossas crenças em vários sentidos, então é extremamente importante. Sou extremamente grata por ter feito parte disso [...]. (estudante de Serviço Social)